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O imbróglio envolvendo a Resolução Normativa n° 433 da ANS, que permitia às operadoras de saúde cobrar dos beneficiários até 40% como coparticipação e foi suspensa liminarmente pelo STF atendendo à OAB, trouxe à baila novamente os desafios enfrentados pelo sistema de saúde suplementar no Brasil.
Tanto a exposição da OAB quanto a liminar do STF acertam em se preocupar com a instabilidade de direitos adquiridos, o déficit democrático nas normas legais, o respeito ao direito constitucional, a mercantilização da saúde, etc.
Sem entrar no mérito da liminar, há, contudo, que ponderar sobre se existem meios e recursos para garantir, na prática, os fins colimados. E também sobre o fato de que enquanto tais fins podem crescer exponencialmente – veja-se por exemplo, os direitos e garantias da Constituição atual – os meios e recursos para atendê-los, estando sujeitos ao inelutável princípio da escassez, evoluem a taxas módicas, podendo até involuir, como se viu em 2015 e 2016.
Para nosso consolo, cabe lembrar que os problemas dos sistemas nacionais de saúde, tanto públicos quanto privados, são generalizados mundo afora.
Um plano ou seguro de saúde é um acordo contratual entre a operadora e o beneficiário em que este faz um pagamento regular e, em contrapartida, a operadora pagará parte ou todos os custos incorridos se algum evento médico previsto ocorrer.
Se o grupo de beneficiários for suficientemente grande e normalmente distribuído, a operadora pode trabalhar com bom grau de confiança estatística em relação ao total de gastos (sinistros de saúde) e, daí, fixar as mensalidades que cobrem esses custos. Porém, se o grupo for anormalmente distribuído – por exemplo, com uma parte demandando muito mais assistência que a média – e a operadora não aferir tal assimetria, os prêmios fixados inicialmente serão insuficientes e a operadora terá de reajustá-los.
Os mercados não funcionam bem nessa situação de assimetria informacional, isto é, quando uma das partes têm mais informações sobre o que está sendo negociado do que a outra. Nos sistemas de saúde, o beneficiário tipicamente sabe mais sobre seu estado de saúde do que a operadora. Alguns inclusive escolhem aderir ao plano justamente antes de algum evento médico importante que antecipam, mas não revelam a operadora, havendo aí desrespeito ao princípio da boa-fé dos contratos.
A consequência pode ser a chamada seleção adversa: as despesas do grupo crescem além do previsto, os prêmios individuais idem e, eventualmente, os beneficiários de baixo risco percebem que estão subsidiando os de alto risco e se retiram do grupo. O que piora ainda mais o problema pela concentração do grupo em riscos gravosos.
Em situações limites, a carteira se torna inviável e todos perdem pela falta de oferta de seguro. Obviamente, a solução desse problema envolve dois passos: a) o exame médico do interessado pela operadora antes da adesão e b) a imposição de um período de carência para condições preexistentes. Qual o período de carência ideal e preciso é algo que não se sabe e que se decide por negociação, em geral, com intervenção dos governos.
Outro problema grave dos sistemas de saúde é o chamado “risco moral”, isto é, a mudança de comportamento do beneficiário após aderir a um plano de saúde em que paga uma mensalidade fixa, independente do seu consumo. Tal mudança pode ocorrer por multiplicação de procedimentos (consultas e exames, principalmente) ou por escolha de profissionais e tratamentos mais caros, além do que seria necessário conforme sua saúde pessoal. Novamente o efeito é o aumento inesperado dos custos do plano de saúde. Tipicamente, o mercado de seguros reduz esse problema pela imposição de franquias e de taxas de coparticipação do beneficiário. Novamente, não existe ciência que fixe o nível ideal e preciso dessas taxas, cada país tendo suas regras, negociadas pelas partes interessadas.
Há ainda a assinalar os desperdícios, abusos e as fraudes na saúde. Segundo o Dr. Edmond Barras, Diretor da Beneficência Portuguesa de São Paulo, nos Estados Unidos, calcula-se entre 3% e 10% as perdas dos setores público e privado de saúde com essas práticas, uns US$ 250 bilhões por ano.
Os abusos têm, evidentemente, componentes econômicos, culturais e regulatórios. Na esfera econômica, sabe-se que o chamado modelo “fee-for-service” estimula o superfaturamento ao longo de toda a cadeia de saúde, tanto pelo hospital, que ganha mais quanto mais procedimentos são feitos, quanto pelo médico e pelo paciente, que tendem ao superconsumo de serviços de saúde. Na esfera regulatória, cabe notar que as relações entre operadora e médico e entre médico e paciente são menos reguladas e menos sujeitas a sanções legais que a relação entre operadora e beneficiário. Na esfera cultural, cabe um trabalho a longo prazo de educação, abarcando consumidores, médicos e gestores de saúde que são o centro nervoso do sistema.
Finalmente, cabe mencionar o descompasso entre a majoração dos custos da saúde pela incorporação de novas tecnologias e imposição estatal de conjunto elevado de coberturas obrigatórias, o acréscimo da renda nacional e os reajustes dos planos de saúde. Dessa tríade, claramente, o segundo elemento não está no controle do governo e de nenhuma entidade individualmente. Daí segue-se que se o primeiro for expandido continuamente pela ação estatal, como tem sido o caso, o terceiro deve ser reajustado em concordância. E, inversamente, se o terceiro elemento tiver de ser contido, não há como expandir o primeiro.
Frequentemente, tem-se a impressão de que muitas pessoas não têm consciência desse dilema entre meios e fins ou se tem, entendem que há um quarto elemento – o “governo” ou empresas caridosas – que bancará o eventual déficit. Mas é bom lembrar que o “governo” não cria recursos, apenas os redistribui. E a caridade é um problema se, afetando a prudência, pela competição, a empresa for expelida do mercado.